domingo, 22 de abril de 2012

Considerações acerca da formulação e utilização de laudos periciais em processos judiciais

O juiz, que não é uma autoridade universal, muitas vezes precisa da manifestação de um experto em determinado tema, para que possa solucionar a lide, sendo cada vez mais comum essa necessidade por serem cada vez mais complexas as causas.
Vivemos num mundo cada vez mais complexo. A complexidade do mundo atual é tão grande, que pode subjugar até o direito se não for dominada, perdendo a condição de instrumento para tomar a condição de agente decisional.
Não tenho dúvidas de que muitas das reformas constitucionais que se fazem hoje na Europa, em decorrência da supremacia normativa da União Européia e com o fito de proteger o “euro”, implicando na supressão de direitos constitucionalmente consagrados e expressamente expungidos das Cartas, o foram por indicação “técnica”.
Os técnicos fazem previsões em temas econômicos, previdenciários e de administração pública e, a partir delas, sem ter como contestá-las, os administradores públicos não temem desagradar a opinião pública e os eleitores, considerando estarem fazendo o melhor, mesmo que o “melhor” implique em ministrar remédios amargos e em resultados funestos, desde que verifáveis a longo prazo.
Em outras palavras, os técnicos são os atuais “conselheiros do rei”, principalmente sobre matérias que o rei não está em condições de compreender completamente e, sobre ele passam a exercer autoridade. O príncipe prefere desagradar o povo escudado em algum vaticínio técnico, do que correr o risco de ser responsabilizado no futuro, por alguma decisão considerada tecnicamente inadequada.
Nos processos judiciais, não é diferente esta constatação, ainda que com repercussão mais ou menos restrita. Mais ou menos restrita porque os processos judiciais projetam efeitos extraprocessuais, ultrapassando os limites processuais subjetivos para indicar ou contraindicar condutas da sociedade em gênero; explico: condutas são incentivadas ou evitadas, em muitos casos, pela divulgação de determinadas decisões judiciais. Quantos planos de saúde e comerciante modificaram o agir, a partir de uma decisão do STJ ou mesmo de uma súmula não vinculante.
Os técnicos que estão conduzindo, em algum grau, os políticos, passam a conduzir também os juízes, quando estes não se limitam a se valer da opinião do experto, mas por ela se conduzir, de maneira quase cega.
De fato, também o juiz, que não é uma autoridade universal, muitas vezes precisa da manifestação de um experto em determinado tema, para que possa solucionar a lide, sendo cada vez mais comum essa necessidade por serem cada vez mais complexas as causas e cada vez mais inalcançável a apreensão de seus contornos de fato,  pelo senso comum.
O juiz é um especialista em direito, mas a complexidade do mundo torna cada vez mais complexa a apreensão e a compreensão dos fatos, sem o que, o direito, se não perde o objeto, perde sua finalidade concreta.
O perito dá ao juiz os conhecimentos técnicos extrajurídicos, seja para a apuração dos fatos, seja para verificação de nexos de causa e efeito, seja para apuração das consequências dos atos dos agentes etc.
O importante contudo, é ressaltar que, se fosse possível resumir o trabalho do perito, em poucas palavras, seria de que a ele cabe aportar dados relevantes e não compreensíveis ou apuráveis por outro tipo de prova, ou seja, fazer a ponte entre a sua ciência e a ciência jurídica.
A ponte deve unir posições opostas, levar-nos ao outro lado do rio caudaloso, nos permitir chegar onde nossa vista não alcança. A ponte que mantém estanques os seus dois lados, não serve para nada, senão para dar a ilusão de um acesso inexistente. Assim também os laudos incompreensíveis, exceto pelo uso de uma ou outra palavra de uso comum ou mesmo pela conclusão hermética, adotada em sentido quase formulário, transcrita “ipsis literis” para converter-se em fundamento de decisão judicial.
Explico novamente: diante de cálculos incompreensíveis ou de perícias médicas que usam apenas jargões e que ao leigo (dentre eles o juiz) dá a compreender apenas o SIM ou o NÃO, o HÁ ou o NÃO HÁ, sem que os fundamentos da conclusão também possam ser conhecidos, a decisão judicial fundamenta-se no laudo, mas o laudo pode fundamentar-se apenas no arbítrio do perito, sem conter bases científicas sustentáveis, como um turista ocidental que, visitando o oriente sirva-se de um guia, precisando em crer em tudo o que ele fala ou indica, um verdadeiro refém do desconhecido.
O juiz não pode converter-se em refém do perito, o que faz quando se comporta como o turista referido, sem preocupar-se em ler previamente alguma coisa sobre o país que visitará e até levar um dicionário básico; ao fazê-lo, fragiliza também as partes, estas as verdadeiras vítimas da imperícia do juiz.
Laudos incompreensíveis ao juiz e às partes não são laudos, porque não comunicam saberes, nem fornecem elementos que, submetidos ao cadinho do direito, permitem aplicar a lei ao caso concreto e mais, podem sequer constituir prova útil, porquanto duas coisas caracterizam uma opinião de autoridade, o conhecimento específico profundo sobre um tema e, a isenção. Sem conhecimento profundo sobre o tema do laudo (e hoje, já não é mais possível apenas nomear um perito médico, mas há de se ver, dentre as especialidades médicas, a que trata do tema objeto da dúvida do juiz, v.g.) e sem isenção, o resultado será uma mera opinião, uma advinhação ou mesmo o externar de um preconceito, travestido de peça científica.
A autoridade apenas aparente, ganha contornos de norma legal, quando é validada pelo juiz ou tribunal, a partir de outro preconceito, qual seja, de que o perito é infalível, isento e se utilizou de um método científico rigoroso para chegar a uma conclusão. O laudo pericial que tem suas conclusões albergadas pelo juiz de 1º grau, dificilmente é desqualificado pela decisão recursal que, muitas vezes aplica à prova pericial, o princípio da imediação (cujo mote é: o juiz de 1º Grau está mais apto a interpretar a prova que presidiu a produção) até pela ausência de possibilidade de aporte – em grau de recurso -  de outros elementos técnicos para afastar as conclusões do perito, diante da desconfiança que normalmente cerca a manifestação do assistente técnico, ainda que, cientificamente mais qualificada.
O assistente técnico, por não ser presumivelmente isento, dificilmente conseguirá convencer o juiz de que o perito do juízo está equivocada; ele pode ter um conhecimento até mais profundo, mas sempre se presumirá que não possui isenção, na medida que é pouco provável que alguém pague para produzir uma prova desfavorável. O pior é que, por vezes, o assistente comete o erro de querer usar mera retórica argumentativa, ao invés de usar a ciência do próprio perito, para desqualificar o laudo desfavorável ou para indicar uma solução diversa daquela a que chegou o experto do juízo.
Diante de um laudo incompreendido em sua essência pelo juiz e da pressão pela rápida solução do litígio, é comum o mero transcrever nas decisões judiciais das conclusões do  laudo incompreensível ao leigo, o que acaba convertendo o perito em árbitro e o juiz em mero homologador do desconhecido, além de tornar a própria decisão nula, por falta de fundamentação (que não é a mera opinião do juiz, mas a conclusão que chegou a partir de um procedimento científico).
Há um procedimento que legitima a sentença: a partir dos balizamentos derivados da litiscontestação, o juiz deve observar o contraditório, permitir a produção das provas a partir de uma liturgia indicada na lei, examinar as alegações e os fatos a partir das normas jurídicas, de uma forma crítica e, ao final, dizer quais as consequências que efeito os fatos provados (ou improvados) produzem sobre a pretensão.
O perito também está sujeito à liturgia própria de sua ciência que indica os passos que deve seguir, as perguntas que deve fazer e os procedimentos e instrumentos que devem ser utilizados para se obter as respostas, que devem implicar num pronunciamento compreensível também a quem não é experto na ciência do perito.
A fundamentação do laudo, assim como a fundamentação da sentença, deve ser compreensível para que possa ser criticada e ser criticável para que seja válida e democrática. O dever de fundamentação das decisões judiciais projeta-se também sobre o laudo, principalmente quando os fundamentos do laudo, tornam-se, “per relationem”, fundamentos da decisão judicial (e, na maioria das vezes, são).  Critica-se muito o hermetismo jurídico, mas admira-se o falar difícil de outras ciências, como se quanto mais incompreensível for a fala, mais competente seja o cientista.
Contudo, há laudos periciais que não correspondem ao exame crítico e científico dos elementos, mas afirmação de um senso comum do perito, travestido de conhecimento técnico, seja pelo uso de jargões, seja pela mera supressão da técnica, substituída pelo hermetismo, pelo laconismo, mero conhecimento mediano, convertido em pronunciamento irrefutável de autoridade (sins e nãos, desacompanhados dos porquês e que podem implicar em resultados diametralmente opostos, mas incontestáveis).
Nem tudo que um especialista fala, deve ser tido como manifestação científica, embora no Brasil façamos facilmente esta confusão (o Pelé já receitou vitaminas em um comercial e cantores e jogadores dão conselhos sobre produtos e serviços). O perito deve ser um especialista no objeto da perícia, deve seguir um método de apuração e de exposição do resultado e deve agir de forma isenta (qualquer preconceito do perito, vicia irremediavelmente o laudo), senão terá aparência de laudo pericial e conteúdo de opinião, de conhecimento mediano.
Por isso, o  juiz não pode se contentar com o conhecimento mediano, ainda que exposto de forma pomposa e em documento firmado por uma autoridade no tema. Deve se impor e impor o uso do senso crítico, na atuação das partes, advogados e auxiliares do juízo, inclusive o perito, como deve impor a sim próprio um agir e um dizer (o direito) científicamente sustentável..
Quando o juiz não conhece a norma ou sua interpretação, busca socorro na jurisprudência e na doutrina. Quando o juiz não compreende o laudo pericial, ou quando o laudo pericial carece de fundamentação científica, ele  deve impor ao perito a complementação e, na recusa, destitui-lo e nomear outro experto. Assim como não lhe é lícito substituir a norma jurídica pelo senso pessoal do direito, não pode permitir que o perito aja da mesma maneira, na medicina, contabilidade, genética, química, elétrica, economia, engenharia etc.
 Embora a celeridade seja extremamente desejável, “copiar e colar” o laudo pericial e fazer remissões genéricas à ausência de prova em contrário, não torna a decisão fundamentada e sim, uma manifestação ditatorial de uma autoridade que se refugia no desconhecido e abusa do poder que lhe foi conferido, para impor a presunção de que suas falas são sempre corretas e isentas de vícios.
Para que a prova técnica seja realmente técnica, é preciso que os operadores jurídicos elaborem, na medida do possível, quesitos meditados e específicos para o processo, que colecionem os laudos primorosos, que pesquisem, que estudem, que troquem idéias com especialistas. A OAB e os Tribunais precisam ministrar formação em ciências extrajurídicas, dar conhecimentos mínimos que, mesmo que não impliquem na desnecessidade do perito, reforcem esta necessidade a partir da real utilidade. O juiz, especificamente, deve conversar com cada perito que pretenda ser inscrito no rol do juízo, acerca do que dele se espera, o conteúdo dos laudos, o modo de atuação na inspeção, nas verificações complementares e na própria elaboração do laudo, deixando claro ainda tanto a obrigação com um conteúdo materialmente científico, quanto formalmente aceitável, quanto a disposição do juízo de impor às partes a colaboração com o experto, a requisição de documentos etc., para que, ao final, com fulcro em suporte verdadeiramente técnico e metodologicamente confiável, poder decidir caminhando por terreno firme e conhecido.

O PERITO É LEIGO EM DIREITO. O JUIZ É LEIGO NA CIÊNCIA DO PERITO. Em sua origem latina, perícia é saber ou habilidade, mas não qualquer saber ou habilidade, o saber e a habilidade de alguém que exerce determinada profissão ou arte e nos limites delas. Não há autoridade universal, quando o perito invade outras searas, se torna um leigo (“o sapateiro não deve ir além do sapato”).
Assim, a perícia é – ou deveria ser -  a ponte que serve a transmitir aos operadores jurídicos, conhecimentos extrajurídicos necessários para sua atuação. Se o perito é leigo em matéria jurídica, os juízes e advogados são leigos em outras ciências e dependem do parecer do experto, ainda que, ao final, ao juiz não esteja a ele vinculado, por ser o perito dos peritos (“iudex peritus peritorum”).
O que se vê, contudo, é que os peritos cada vez mais querem demonstrar conhecimentos jurídicos, trazendo aportes jurisprudenciais e doutrinários jurídicos aos laudos etc. ao invés de considerar apenas as dúvidas postas em casos pretéritos, para levantar suas hipóteses, seja para confirmá-las, seja para afastá-las. Querem assim, ensinar direito ao juiz (que é autoridade nesse tema), ao invés do tratar do tema que levou o juiz a nomeá-lo e em que o juiz é leigo ou, quiçá, trazer elementos exógenos – jurídicos ou retóricos -  para outorgar ao laudo uma autoridade que não teria pelo conteúdo que lhe é próprio.
Contra uma profusão de sins e de não sem os porquês, sucedidos por uma conclusão ditada em linguagem hermética, resta ao juiz pescar um ou outro vocábulo útil (há nexo causal, não há nexo causal, há
Entretanto, o mais grave não é isso, já que, esquece que o juiz e os advogados são leigos na matéria objeto do laudo, não estando obrigados a entender jargões técnicos, linguagens herméticas (médica, por exemplo) e delas se utilizam em profusão e mais, sem tradução, com um resultado funesto: é comum que alguns juízes, sem entender os fundamentos do laudo, baseiem-se apenas em suas conclusões, no SIM e no NÃO, no há e no não há nexo, sem que possa fazer um exame mais aprofundado dos motivos que induziram essa conclusão e mais, sem possibilidade de buscar nas outras provas confirmar ou infirmar as falas do perito.
A falta de fundamentação do laudo, ao menos a falta de uma fundamentação compreensível ao leigo – que é a razão principal a impor a sua confecção – torna arbitrária a conclusão do experto, seguida pela decisão também arbitrária do juiz que se limitar a transcrever entre aspas o que disse o experto, para apenas dar o aval judicial à sua fala.

A PROVA PERICIAL É UMA PROVA TÉCNICA. Como referido alhures, o laudo pericial é uma peça científica, de forma que, sua elaboração exige objeto específico e utilização de método (e não de mero procedimento), com fundamentação também científica de suas conclusões. Como as decisões judiciais devem ser fundamentadas (art. 93, IX, CRFB), também os laudos periciais devem sê-lo e mais, fundamentados com base científicas e não meramente leigas (achismos).
Nessa quadra, em que reside a cientificidade do laudo?
Primeirto, a  cientificidade não reside apenas no laudo, mas nos atos do perito que o precedem, a formulação das hipóteses, a inspeção ou a avaliação, a quesitação etc.
Por outro lado, o laudo é um relatório técnico objetivo, que deve indicar as hipóteses provisórias, os quesitos das partes, o objeto, o método utilizado para solucionar as questões postas,  os aparelhos e instrumentos utilizados (com referência à aferição técnica que os torna confiáveis etc.) o modo como foram realizados os exames, indicações doutrinárias que apontem quais os exames que devam ser realizados e como devem ser realizados, para confirmar ou infirmar determinadas hipóteses etc. Não é objeto deste artigo indicar em específico a construção do laudo, até pela variabilidade decorrente do objeto.
Respostas herméticas, que abundam nos laudos periciais não são sequer indutivas, traduzindo argumento de autoridade inaceitável em uma prova judicial, destinada a submeter-se ao contraditório (ser objeto de impugnação etc.).
Para quesitos complexos, limitam-se a SIM, a NÃO, a remissões nem sempre encontráveis (“já respondido”, “ver corpo do laudo” etc.) ou mesmo à dúvida ou ao arbitramento igualmente não fundamentado. Diante de um determinado fato, o cientista deve levantar as hipóteses prováveis, submetê-las a prova, descartar as improvadas e indicar uma conclusão (ou a impossibilidade de fazê-lo).
Para levantar as hipóteses, pode inquirir as partes e testemunhas, mas não é dessas oitivas que pode extrair, isoladamente, suas conclusões. O perito não é experto em tomada de depoimentos, nem a prova pericial pode ser confundida com proval oral[1]; o que pode e deve é, ouvindo informalmente as partes e testemunhas no curso da inspeção, extrair, em complemento aos quesitos, as hipóteses a serem investigadas para depois confirmá-las ou infirmá-las a partir de elementos técnicos, indicar a impossibilidade de fazê-lo ou submeter ao juiz, v.g.,: a) “Fulano de tal afirmou que o acidente ocorreu de forma “x”; se tivesse ocorrido dessa forma, deveria deixar os sinais “z”, “y” e “w”  conforme indica a doutrina médica, sendo que, os exames complementares não confirmaram a presença desses sinais”; b) Fulano afirmou “x”, siclano afirmou “y”, pelo que, passo a examinar essas hipóteses... Em ficando prova que o autor estava submetido a tal ou tal condição, por pelo menos “x” tempo por mês, fica descartada a origem congênita da patologia...” (nesse caso, a prova pericial deve ser complementada pela prova oral ou documental)[2].
O perito é um investigador de fatos à luz de determinada ciência, não seu adivinho... é indutiva a conclusão de que determinada situação verificada no momento da inspeção existia ou não existia ao tempo do lapso objetivado no processo, ou seja, não é porque a situação encontrada pelo perito é “x” que ele possa concluir que era “x” há vários anos atrás; cabe-lhe – para utilizar o exemplo dado – que indique se houve ou não alterações e, se essas alterações poderiam ter melhorado ou piorado o ambiente investigado, ainda que relegue para o juiz (e as provas que determinará) apurar qual era o “status quo” na época objeto da pretensão. Em outras palavras, é indutiva e inválida a conclusão de que, se hoje é assim, sempre foi assim, quando pode haver tanto depreciação das condições, quanto a sua melhoria, inclusive industriadas para induzir o perito a concluir que as condições sempre foram favoráveis ou desfavoráveis. O que ele pode concluir é pelo que viu, ouviu, testou de forma científica e só isso.
Em verdade, no laudo pericial, o perito deve formular raciocínios dedutivos e apenas quando não for possível (dada a inexistência, por exemplo, de elementos que permitam a realização de exames técnicos complementares) e, após deixar explícita essa condição, indicar também de forma expressa, uma conclusão indutiva, que servirá então como mero ponto de apoio para que o juiz, com suporte em outras provas complementares, possa decidir acerca do tema. Assim, não pode o perito concluir que algo ocorreu de determinada forma, porque via de regra assim ocorre, sem afastar, fundamentadamente, todas as hipóteses que poderiam indicar ou a não ocorrência do evento, ou sua origem diversa da habitual.
O perito deve assim, deduzir suas conclusões a partir de um método ditado por sua ciência, com o máximo rigor na respectiva aplicação. Decorre desse caráter dedutivo que a fundamentação do laudo deve ser lógica e não meramente argumentativa (o perito deve trazer fatos cientificamente comprovados e não argumentos), muito menos retórica (em seus sentido pejorativo, de convencer mesmo sem ter razão).  Se, o argumento de autoridade vem sendo utilizado pelo juiz para louvar o laudo (principalmente na ausência de outros elementos), não pode ser utilizado pelo perito, para concluir – é assim porque eu, autoridade no assunto, digo que é assim). Laudo não construído de modo formalmente lógico e a partir de constatações ditadas pelo preconceito ou a partir de modelos e não do caso concreto  é mera peça opinativa, ainda que emitida por autoridade no assunto e detenha condição formal de laudo, com conteúdo divorciado dessa classificação.

CONCLUSÕES: As conclusões são sombrias. Por um lado, a complexidade vem tornando o juiz cada vez mais dependente da utilização da prova técnica. Por outro lado, o   jeitinho brasileiro contaminou a técnica e não há, em muitos casos, a preocupação com o rigor metodológico e científico, com a formulação de todas as hipóteses relevantes, com a respectiva submissão à prova (se as partes e o juiz não perguntarem, é possível que uma questão complexa receba resposta simplista e sem qualquer explicação da origem da conclusão ou mesmo que o perito não faça questão alguma, limitando-se a expor o problema e ditar a solução, de forma desfundamentada). Há peritos que estão mais preocupados com examinar a jurisprudência em questões similares e fundamentar mais o pedido de honorários, do que fornecer ao juiz elementos robustos para a solução do caso concreto, embora haja também peritos conscientes, dedicados e realmente isentos que, sem qualquer preconceito, buscam aplicar sua ciência com rigor e transmitir as conclusões com humildade e simplicidade de fala, para torná-la aproveitável no processo, embora os honorários a que fariam jus sejam muito maiores do que lhes é possível arbitrar. Há juízes que consideram a prova pericial mera exigência formal e que não se preocupam nem com a escolha dos peritos (cada vez mais raros, por conta dos honorários parcos e morosos), nem com os quesitos, muito menos com uma análise crítica e não meramente assimilativa ou compilativa das conclusões do experto, convertendo a conclusão do perito em dispositivo de sentença. Para completar, os tribunais podem tender a considerar que o perito é uma autoridade irrefutável, que o juiz de 1º grau está mais apto a interpretar a prova pericial e que, a celeridade processual é preferível sempre, usando o que Taruffo designou “tecnique di salvataggio”, refutando-se arguições de nulidade e abdicando da materialidade que a prova pericial poderia e deveria aportar, para se contentar com a mera formalidade. Como a complexidade do mundo atual é cada vez maior, mais lúgubre e real é a possibilidade das injustiças nascerem do descaso ou das ignorâncias do perito, sucedidas pelo descaso, preguiça ou ignorância específica do juiz e do tribunal, revogando-se até a lei da gravidade, em razão de presunção ou de um laudo que suscite esta hipótese absurda, para descrédito das instituições judiciárias e das próprias leis.

Notas

[1]  O perito pode inquirir pessoas para obter dados, no momento da inspeção, mas disto pode extrair apenas hipóteses e não conclusões. Ele não é experto em tomada de depoimentos e mesmo os juízes, muitíssimo mais experientes nessa atividade, são muitas vezes enganados. Um perito só pode considerar determinada hipótese como única, quando se tratar de  matéria incontroversa nos autos, assim reconhecida pelo juiz.
[2]  - O perito pode e deve requisitar a apresentação de documentos ou objetos para a verificação, comunicando ao juiz eventuais recusas ou resistência à colaboração. Não deve, por outro lado, aceitar qualquer forma de pressão ou de sugestão de conclusão, igualmente comunicando ao juiz, qualquer ato das partes, procuradores ou serventuários, que possam por em dúvida sua independência e isenção.


Autor

  • José Ernesto Manzi

    Desembargador do TRT-SC. Juiz do Trabalho desde 1990, especialista em Direito Administrativo (La Sapienza – Roma), Processos Constitucionais (UCLM – Toledo – España), Processo Civil (Unoesc – Chapecó – SC – Brasil). Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI – Itajaí – SC – Brasil). Doutorando em Direitos Sociais (UCLM – Ciudad Real – España). Bacharelando em Filosofia (UFSC – Florianópolis – SC – Brasil).

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Em 8 minutos, um pedófilo convence um menor a fazer sexo online

Autor: Joana Teles | Leitores: 3642
Segunda-feira, 02 Abril 2012 16:34
Pesquisa indica que oito minutos distam entre o momento em que um pedófilo estabelece diálogo na Internet com uma criança ou menor e os convence a fazer sexo online. E em  apenas três minutos, os predadores entram em conversa de teor sexual, com partilha de fotografias.
O trabalho realizado pela Universidade de Middlesex, em Londres, e divulgado pelo jornal Telegraph deixa perceber, por um lado, a capacidade dos predadores sexuais para atingir os seus fins e a vulnerabilidade das vítimas, que a milhares de quilómetros de distância são dominadas pelos pedófilos que vagueiam pela Internet.
São suficientes três minutos para que se estabeleça uma conversa aberta e os pedófilos entrem no campo sexual. E cinco minutos depois já conseguem dominar a sua vítima, criança ou adolescente, que é conduzida por uma relação sexual online.
O segredo para este curto espaço de tempo está na inocência da vítima e no domínio (disfarçado de inocência) do predador sexual que circula na Internet à procura de menores facilmente dominados.
A facilidade com que seduzem a vítima é definida no tempo que necessitam para o fazer: bastam oito minutos. Acresce que, de acordo com Elena Martellozzo, autora do estudo, os predadores sexuais encontram no mundo online um “espaço seguro” para levar a cabo os seus crimes de pedofilia.
“No mundo virtual, quase todo o tipo de ofensas é permitido, incluindo as de abuso de menores”, realça a autora do estudo, que destaca ainda a capacidade de defesa dos predadores sexuais para escapar à lei, quando a polícia os apanha.
Escudam-se em desculpas sempre pouco credíveis – por exemplo, referem que estariam a dar noções de segurança aos menores –, mas que os tornam, muitas vezes, imunes a qualquer tipo de penas judiciais.
Do outro lado, estão crianças que, segundo explica Elena Martellozzo, muitas vezes “nem sequer se apercebem” de que estão a ser vítimas de um crime sexual através da Internet. Consideram o contacto “divertido” e chegam a partilhar fotografias com pedófilos.
De fora deste problema estão os pais, a quem cabe a responsabilidade de alertar os filhos para os perigos dos contactos com estranhos no mundo da Internet, nas redes sociais e não só.

Fonte:http://www.ptjornal.com/201204026660/sociedade/em-8-minutos-um-pedofilo-convence-um-menor-a-fazer-sexo-online.html

domingo, 1 de abril de 2012

Focault vai contra 'apartheid criminológico'

Focault vai contra 'apartheid criminológico'


O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) combateu veementemente todas as formas de exclusão e de opressão. Aluno de Louis Althusser e de Mearleau-Ponty, Foucault foi popular na década de 1960, como membro da “gangue dos quatro estruturalistas”, ao lado de Lacan, Barthes e Lévi-Strauss.
Uma década mais tarde, Foucault alinhou-se aos novos filósofos que haviam se afastado do marxismo e do maoísmo. É hoje autor seminal no contexto da discussão dos problemas de nossa época em vários campos, que transitam da epistemologia para psicanálise, da historiografia para a estética, das teses de biopoder para a criminologia. Nos últimos anos de sua vida, Foucault flertou com o estoicismo e explorou possibilidades de uma nova ética.
Trato muito rapidamente no presente ensaio de um de seus mais instigantes livros, a História da Loucura na Idade Clássica, no qual se tem oportuníssima crítica a criminologia que exclui e que persegue loucos, feios, mestiços e pobres. Trata-se de texto importante que estimula reflexões em assuntos de criminologia.
Em História da Loucura na Idade Clássica, Foucault apresentou inusitada pesquisa sobre a exclusão social dos supostamente insanos. Começou o livro lembrando a stultifera navis, a nau dos loucos, e a exclusão que tais navios realizavam, vinculando comparações com os leprosários e com o regime de reclusão que alcançava esses doentes.
Lembrou-nos Foucault que a lepra fora substituída pelas doenças venéreas, e que todos os doentes reclusos viviam sob a tutela do medo e do horror. Ainda sobre a stultifera navis, escreveu que “um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos” (FOUCAULT, 1991, p. 9).
Uma observação aparentemente estilística invoca percepção da escrita da história. Usando os verbos no indicativo presente, modo que os gramáticos nominam de presente histórico, Foucault transferiu o tempo pretérito para nossa contingência atual, quebrando barreiras temporais de narrativa. De fato, “a intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários” (VEYNE, 1998, p. 239).
Lendo o passado com Nietzsche, Freud e Artaud, Foucault percebeu na loucura, enquanto artefato do pensamento humano excludente, fonte de dilaceramentos, canto que esconde uma “abafada consciência trágica” que não deixou mais de ficar em vigília.
Analisando a loucura em Erasmo, em Cervantes e em Shakespeare, Foucault constatou que a loucura ocupa sempre lugar extremo no sentido de que não há recurso. A loucura seria caminho sem retorno. Encarcerado, o louco fica sob o jugo de soberania quase absoluta, de jurisdição sem apelações, sob a mira de um direito de execução em relação ao qual nada pode fazer, sob a tutela e vontade do diretor de um hospital geral.
No mesmo lugar coloca-se o miserável, a quem se rejeita a outorga de personalidade moral. Desenvolveu-se um mundo correcional, repleto de terapêuticas que revelam paisagens imaginárias, que dão o pano de fundo a convergência operacional entre medicina e moral. E então a loucura passa a referenciar-se e a projetar-se também nos sistemas obrigacionais:
“Enquanto sujeito de direito, o homem se liberta de suas responsabilidades na própria medida em que é um alienado; como ser social, a loucura o compromete nas vizinhanças da culpabilidade. O Direito, portanto, apurará cada vez mais sua análise da loucura; e, num sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da alienação que se constitui a ciência médica das doenças mentais” (FOUCAULT, 1991, p. 130).
Justifica-se, por outro lado, em contrapartida à desoneração obrigacional do louco, a perda da liberdade de movimentos:
“Se, pelo contrário, os insanos são particularmente perigosos, mantêm-nos num sistema de coação que sem dúvida não tem natureza punitiva, mas que deve apenas fixar rigidamente os limites físicos de uma loucura enraivecida, Normalmente são acorrentados às paredes e às camas. Em Bethleem, as loucas eram agitadas, eram acorrentadas pelos tornozelos à parede de uma comprida galeria, (...) num outro hospital, (...) uma mulher era sujeita a violentas crises de excitação: era então colocada num estábulo de porcos, os pés e as mãos amarrados; passada a crise, era amarrada na cama, protegida apenas pela coberta; quando autorizada a dar alguns passos, ajustava-se entre suas pernas uma barra de ferro, fixada por anéis aos tornozelos e ligada a algemas através de uma corrente curta” (FOUCAULT, 1991, p. 149).
Foucault também estudou a mania e a melancolia. Quadros patológicos contemporâneos sugerem equivalência com estados de psicose maníaco-depressiva ou de bipolaridade. Acréscimos e deficiências de autoestima indicam, na teoria psicanalítica contemporânea das neuroses, os referenciais de depressão e de mania (FENICHEL, 2000, p. 379), que Foucault identificou em autores antigos, com alusão a complexo conceitual que transita do mito da química para uma verdade dinâmica do sofrimento pessoal.
A demência é fantasma que nos ameaça. A desrazão é penalidade que decorre do não alinhamento (voluntário ou não) com os protocolos do mundo racional. A desrazão seria também um prêmio pelo esforço centrífugo de não adesão (também voluntária ou não) à racionalidade que caracteriza nossa tradição ocidental.
A loucura alimenta um apartheid criminológico, que também conhece muitas outras versões. Refiro-me a certo darwinismo social (ainda que otimista), a uma tentativa de legitimação da exploração em Spencer, ao racismo de Gobineau, à estúpida tese da degeneração mestiça em Benedit Augustin Morel, à teoria da degeneração em James-Crowles Prichard, à diabólica tese do enfeiamento de Franz-Josef Gall.
Neste último caso, entabulou-se sinistra lógica que afirmava que a fealdade seria um desvalor estético enquanto a maldade seria um desvalor ético (cf. ZAFFARONI, 2011, p. 97). A aproximação negativa de caracteres físicos com psíquicos também fora cogitada por Gian Battista Della Porta. O auge de tais teses ocorreu com a propagação do positivismo spenceriano de Cesare Lombroso, para quem o criminoso seria representante de espécie humana cujo ciclo de evolução materna não se completara (cf. ZAFFARONI, cit., p. 99).
Entre nós, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), professor de medicina legal na Bahia, crítico feroz de qualquer forma de miscigenação, defensor de formas mais hediondas de exclusão social.
As críticas de Foucault se dirigem a uma criminologia baseada na exclusão, defensora de apartheid criminológico, que devemos combater, recorrentemente. Nesse sentido, elogiável o humanismo de Foucault, firme na denúncia de todas as formas de opressão e de exclusão, antigas e contemporâneas.
Os cânones da dignidade da pessoa humana, que defendemos intransigentemente, não pactuam com fórmulas ofensivas de exclusão e de perseguição. A crítica filosófica é importante instrumento de conscientização na luta pela libertação humana no combate sistemático a instâncias ideológicas opressoras.
A História da Loucura na Idade Clássica, de Foucault, é livro provocante, que desafia o leitor, no sentido de que entendamos que boa parte de nossos problemas não estão na história, mas em nós mesmos, porque, afinal, somos nós que escrevemos nossas histórias, fixamos nossas opções e escolhemos nossos destinos.

Bibliografia
FENICHEL, Otto. Teoria psicanalística das neuroses. São Paulo: Atheneu, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 3ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. La palavra de los muertos- Conferencias de Criminologia Cautelar. Buenos Aires: EDIAR, 2011.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é consultor-geral da União, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 1º de abril de 2012